sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Dando-me conta

O Sapateiro

Ainda lembro, com certa nitidez, a figura do meu vizinho. E fico pensando: Porque achamos que as crianças não entendem o que vêm? ... Lembro de um homem magro, a cabeça encurvada, sempre a consertar, lustrar algum calçado. Lembro de tristeza em sua aparência, embora não lembre de ter visto seu rosto. Me pergunto: Porque essa cena faz parte de minhas lembranças? Sempre sério e calado incapaz de falar qualquer coisa que não fosse o assunto em questão; o conserto de algum calçado. A lembrança me traz uma imagem, e hoje eu a traduzo; tristeza, timidez. Seria assim só com os fregueses? Parece que enquanto trabalhava, carregava um peso ou pensava em algo que merecia toda a sua atenção, ou  preocupação, quem sabe alguma dor. Faz quase cinqüenta anos. Imaginaria ele que uma garotinha carregada pela mão de suas irmãs o observaria a ponto de descrevê-lo tanto tempo depois? Nem tudo foge ao olhar de uma criança, pelo contrário. Mas quando os anos vão passando por nós, levam muito de nossa atenção nas ocupações e preocupações dos dias, e isso tende a tornar-se cada vez mais intenso. Um dia, o circulo começa a fechar sem a gente se dar conta, e começamos a dar conta que já damos conta de nossas incumbências e começamos a voltar pro começo e nos damos conta que se quisermos continuar, só há um caminho; Recomeçar, então é necessário a faxina da alma, dolorosa função que a águia nos ensina. Mas se chegamos a esse ponto é porque podemos passar por ele. Quando a alma se acalma do ritmo frenético do trabalhar dia a dia, do ser mãe (mãe a gente continua sendo e não quer deixar de ser, mas um dia os filhos cresceram). Do pagar contas, do fazer contas. As tardes se tornam longas, o vento acaricia as folhas das árvores, na minha janela há uma roseira, rosas brancas, é primavera outra vez. É tudo tão delicado. A pessoa que me tornei estranha tudo isso. O mercadinho da frente assa pães quentinhos pro café da tarde, eu não tomo mais café da tarde. O cachorro dorme espreguiçado em sua almofada. E a consciência começa a fluir, fluir, fluir... é só dar uma chance pra ela. E pergunta inquieta; --- E agora? Vamos acordar?!?! Ou é para dormir...
A consciência quer acordar, espreguiçar-se, chorar, berrar como uma criança esquecida.
Na realidade quer recomeçar, ou começar algo que não teve chance de viver.
E os antigos vizinhos e os antigos dias, fazem fila à porta da memória. Uns de cabeça baixa outros mais eufóricos, todos querem ter chance. Outros momentos, mais tímidos que sabem não querer ser lembrados; Mas a consciência convocou a memória; - Todos devem estar na fila. Todos devem ter sua chance. Porque a vida quer viver. Meu vizinho "sapateiro", soube que morreu, ainda na minha infância. Se hoje o conhecesse, imaginaria uma palavra que fosse pra tirá-lo por um momento de sua “curvatura” de sobre a prancheta de calçados (era assim que eu o via). Será que mudei? Pois agora me veio à lembrança, aqui ao lado, neste momento da vida, há um vizinho solitário de cabeça baixa, que eu percebo, mas não cumprimento, porque da forma como se comporta, acho que não iria responder. Ou o que iria pensar? Olhe só o que acabo de me dar conta. A consciência precisa continuar fazendo seu trabalho. A consciência me dando conta.

M Jussara

27.10.09

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